sexta-feira, agosto 24, 2012

Meu amigo, o jerico

Desde que eu era pequeno minha mãe sempre dizia: "pára com isso, menino, que ideia de jerico".

Acho que era a coisa que eu mais ouvia.

Quando eu quis comer algodão porque não me achava fofinho, ela disse isso.

Quando eu resolvi ir atrás da minha paixão, Rapunzel, e eles me acharam pedindo carona na beira da estrada com a mochila no ombro, ela também disse isso.

Até quando eu derreti uma joiazinhas dela pra fazer um megasuperanel ela disse isso!

Fui ouvindo, fui ouvindo e acabei mesmo acreditando que eu tinha um amigo chamado Jerico e que vivia tendo ideias muito legais que minha mãe odiava.

Só muito tempo depois fui saber que jerico era tipo um burro. Naquela época, o Jerico pra mim era um menino da minha idade, do meu tamanho, só que muito mais esperto e maneiro do que eu.

Resolvi assumir a amizade e pra tudo o que eu precisava, sabia que podia contar com o Jerico.

Na hora da prova eu não sabia qual era a capital da Bolívia? Perguntava pro Jerico e a resposta vinha fácil: Inhapim.

Não sabia o que dizer pra menina mais linda da escola? Fala pra ela que você é um robô e que foi programado pra ficar ao lado dela até ganhar um beijo, se não você vai destruir a cidade.

Queria entrar pro time de futebol, mas era péssimo? Vai de óculos escuros e bengala, o treinador vai achar que pra quem é cego você até que joga muito bem.

E assim foi. Sempre que eu precisava, o Jerico estava do meu lado. Claro que as sugestões dele nem sempre funcionavam, mas uma coisa eu preciso dizer: ele nunca era chato. Mesmo quando tudo dava errado, eu e ele morríamos de rir e nos preparávamos para outra situação com a mesma vontade de fazer tudo, menos o que todo mundo fazia.

Fui crescendo, entrei para a faculdade, me formei, me casei e hoje trabalho em uma grande empresa. Não vejo mais o Jerico com tanta frequência, mas quando a coisa aperta, quando tudo fica muito comum, eu chamo meu amigo e lá vamos nós descobrir até que ponto somos loucos e até onde os outros são capazes de ir.

Tem dado certo. E sabe a menininha do robô? Tá esperando o nosso terceiro filho.

Valeu, Jerico!


PS - historinha inspirada pela Sophia, que sempre tem as mais adoráveis ideias de jerico.


Direto na têmpora: Naked in the city again - Hot Hot Heat

segunda-feira, agosto 20, 2012

Irreversível

Dizem que a morte é irreversível. Na verdade, não sei.

Até onde percebo, nunca estive morto e não faltam crenças por aí a me defenderem milhares de conceitos diferentes sobre a morte e o que acontece após a mesma.

Já com a vida é diferente. Podemos até ter outras depois, mas nenhuma será igual a esta. É o barro com que trabalhamos hoje, é o que nos resta e o que nos sobra.

É nesse breve percurso, que algumas vezes nos parece tão longo, que deixamos o rastro de nossos erros, nossas mãos estendidas, nossas ações, nossas intenções, nossas conquistas, perdas e paixões. 

Pode ser que haja outra chance em outro lugar, em outra vida, em outra dimensão. Quem sabe?

A verdade é que nessa vida que vivemos, nesse insignificante e único nanoinstante do infinito que nós é dado, não há remendo. Nosso trajeto é nosso legado para outros trajetos tão curtos como os nossos.

A vida, sim, é irreversível, meus amigos. E viver bem é o único caminho.




Direto na têmpora: Remember - The Raveonettes

sexta-feira, agosto 17, 2012

Paixão

Eu respeito e acredito no poder de tudo aquilo que te faça viver melhor e ser mais feliz, seja uma religião, uma dieta ou um programa de tv.

Quem sou eu para tentar te ensinar o que é felicidade quando ainda estou aprendendo que o que é bom pra mim pode ser veneno para os outros?

O fato é que eu acredito na força das paixões. Muitas vezes eu não compreendo alguém que dá a vida por um time de futebol ou que esbraveja e rompe amizades por conta de uma visão política, mas eu admiro. De verdade. E torço pra que essa paixão não seja um equívoco, mas sim um motor que faça a pessoa ser melhor, mais completa, mais "ela mesma".

Até porque, sobre alguém sem paixões há muito pouco o que se dizer.




Direto na têmpora: Sir, Your Fashion Has the Cold Heart of A Killer - The Beautiful Girls


quinta-feira, agosto 16, 2012

O que a gente tem a dizer

Durante anos encontrei profissionais de publicidade que sabiam exatamente como dizer as coisas. Como dizer que o consumidor iria pagar mais, como dizer que aquela promoção era imperdível, como dizer que meu achocolatado era melhor do que o outro. Na verdade, sempre fui, ou tentei ser, um deles.

Os reis da forma, os mestres da boa ideia. Admirava, admiro e respeito todos eles. O título que marca, o roteiro bem sacado são uma forma de trazer leveza, beleza e criatividade ao dia do público. E de vender, é claro.

O problema é que, já faz algum tempo, somos convidados a participar do processo de descobrir, junto ao cliente, "o que deve ser dito". É um passo anterior, que fornece a base para a grande ideia sobre "como dizer".

Talvez seja um momento mais assustador do que a chegada do computador e mais revolucionário do que a popularização da internet. Precisamos nos envolver mais, abrir nossas mentes para outros processos, outras demandas, outras questões.

O desafio de sermos mais completos do que julgávamos necessário faz com que uns aproveitem e outros se encolham.

Por enquanto é uma decisão de cada um. Em pouco tempo será uma questão de sobrevivência. Melhor escolher seu lado agora e arregaçar as mangas, filhote.




Direto na têmpora: One - Vampire Weekend

quinta-feira, agosto 09, 2012

Álbum de fotografias

Gino tinha 21 anos e, no meio do curso de Engenharia Química, com tantas provas, matérias e preocupações com estágios e empregos, já começava a sentir falta da época do colégio.

Foi assim que bateu nele a vontade de rever as fotos da velha turma: as festas, os encontros, a bagunça na escola e a formatura do ensino fundamental.

Abria os arquivos e relembrava rostos, piadas, aventuras e parecia que já não estava mais no meio da faculdade, e sim vivendo novamente os bons momentos dos seus 17 anos. Tudo havia se passado há apenas 4 anos, mas pareciam séculos.

Até que um rosto chamou a atenção de Gino. Começou a reparar em um menino de cabelos claros e olhos bem pretos que aparecia em todas as fotos. Engraçado, não se lembrava dele.

Com certeza não eram da mesma sala, mas o garoto podia ser de outra classe. A idade era mais ou menos a mesma dele na época e não seria estranho se eles tivessem amigos em comum.

Passou as fotos na escola, as fotos das festas, da formatura e o menino sempre estava ali, sorridente, brincalhão e irritantemente desconhecido.

Deu de ombros, desligou o computador e foi dormir. Inútil, a imagem do menino tão presente e que escapava da sua memória o mantinha acordado. Resolveu mandar um email com uma das fotos para ver se alguém da turma se lembrava.

Acordou no dia seguinte, correu pra mais uma das intermináveis aulas e, no meio do caminho, foi checar os emails. Dos 13 emails para amigos que havia enviado, 7 haviam respondido e nem um sequer se lembrava do garoto.

Achou aquilo estranho e ficou mais impressionado ainda quando de noite descobriu que nenhum dos colegas se lembrava do rapaz. Encaminhou a foto para a turma inteira e, 3 dias depois, tinha a certeza na caixa de emails: ninguém sabia quem era o mocinho de olhos escuros.

Os dias se passavam e Gino ficava cada vez mais incomodado com aquilo. A coisa chegou a tal ponto que se resolveu a matar estágio e foi até a escola falar com os professores. Como podia se esquecer de alguém que estivera tão perto dele em tantas ocasiões? Algum educador com certeza poderia esclarecer o mistério.

Chegou à escola e deu de cara com o Romão da portaria. O Romão estava ali há uns 30 anos e seria a pessoa certa para esclarecer as coisas.

Conversaram fiado, trocaram novidades e logo depois o Gino já foi mostrando a foto. Romão olhou, olhou e um tempo depois perguntou.

- Como é que você fez isso? 

- Isso o quê?

- Essa foto com o Rui.

- Ah, então esse de cabelo claro chama Rui? De que turma ele era?

- Chamava Rui, sim. Como é que você fez isso?

- Fiz o quê, Romão? São as fotos da minha época aqui na escola.

Romão balançou a cabeça. Gino ficou olhando pra ele sem entender até que o velho porteiro falou.

- Gino, essa foto é impossível. O Rui estudou aqui 20 anos antes de você. Ele tinha uns 16 anos quando se enforcou no banheiro do vestiário. Eu sei porque fui eu quem tirou o corpo da corda. Agora, me responde como é que você fez isso?

Gino saiu correndo. Apagou todas as fotos do computador, reformatou a máquina e jurou nunca mais dizer uma palavra sobre o assunto para ninguém. Nunca mais procurou o Romão e nem buscou o contato dos velhos amigos.

O medo durou uns 3 anos. Dormia de luz acesa,acordava sobressaltado, olhava pra trás sempre que estava sozinho e sentia arrepios e calafrios a todo o instante.

Com o tempo foi esquecendo as fotos, esquecendo o menino-fantasma e seguiu sua vida. Formou-se, casou, teve duas filhas e assim seguia sua história.

Em uma manhã de domingo qualquer acordou com uma bagunça tremenda na sala. Levantou-se e encontrou as baixinhas com as fotos do casamento espalhadas pela sala. Comentavam que o pai usava cavanhaque, que estava mais magro, que não tinha cabelos, brancos, que a mãe que estava linda, que a avó estava engraçada.

Juntou-se a elas, pegou uma foto a esmo e gelou ao ver, bem atrás dele e da mulher, aqueles cabelos claros, aquele sorriso vivo e aqueles malditos olhos bem pretos que olhavam direto para a câmera.




Direto na têmpora: Jane Says - Jane's Addiction